ARTIGOS

Publicado em 16 de Outubro de 2013 11:20

Retirantes

Publicado por Valdeblan Siqueira Expirado

Nesta crônica, quase tudo é emprestado. A começar pelo título, Retirantes, tomado do óleo sobre tela de Portinari, do ano de 1944 que, caso não tenha sido roubado, deverá constar ainda do acervo do Museu de Arte de São Paulo. A seqüencia de imagens que invade minha memória não encontra outro paralelo, para reproduzir a cena e o sentimento correspondentes. Mas, poderia apoiar-se, também, na verve literária de Graciliano Ramos, a partir de sua obra, Vidas secas, na qual relata a triste história de Fabiano. Pouco provável que um dos personagens de minha lembrança tenha o mesmo nome. Nessa hipótese, já não seria coincidência, mas um abominável plágio.

Numa tarde de sexta-feira, já não há tanta pressa para voltar a casa. Antes de pôr o veículo em marcha, disponho de tempo suficiente para olhar ao redor. Na calçada, uma cena chama minha atenção. Vejo uma bela e jovem senhora aproximar-se do lixo, depositado na frente de um prédio. Cata coisas de seu interesse. Rasga uma bolsa plástica e dela retira um papelão. Olha para o outro lado da calçada. Sou tentado a acompanhar a busca de cumplicidade daquele olhar, que encontra outro, tão jovem quanto o dela. Seu companheiro puxa uma carroça com um carinho incomum para quem transporta papelão. Invasivo daquela intimidade, me pergunto, serão irmãos? Não tenho que esperar muito para ver dissipada a minha dúvida. Sua cuidadosa manobra revela que constituem uma família, batalhando pelo leite da linda criança que dorme, tranqüila e serenamente, sobre papelões, no fundo da carroça.

Foram-se embora. Ficou, porém, uma inquietação, própria de quem inicia a leitura de um romance e se sente incomodado quando tem que suspendê-la, por qualquer razão. Naquela saga, quisera ver um final feliz. Como na literatura infanto-juvenil de Maurice Druon, O Menino do dedo verde, quisera poder mudar o final daquele enredo. Na impossibilidade de fazê-lo, no mínimo poder lavar minha consciência, antes de deixar partir aquela lembrança. Permitir-me uma reflexão. Mas, que seja conseqüente. Que vá além da percepção de uma eventual beleza estética, contida na pobreza e na miséria. E, ainda que o despertar da sensibilidade moral decorra da beleza daqueles personagens, a consciência, tanto moral quanto política, deverá percorrer outro caminho: o da compreensão do processo de empobrecimento dos que vão ficando à margem das novas formas de produzir e de comercializar as riquezas.

Manipulando atabalhoadamente conceitos sartrianos, é possível dar-se conta da essência que vai sendo moldada pela existência. Seres famélicos vão-se transformando em pessoas feias, externa e internamente. De tanto buscar e não encontrar vai-se perdendo a esperança de alcançar e conquistar uma vida digna, justa e feliz. Troca-se o sorriso pela tristeza no rosto dos que tentam ganhar o pão com dignidade, enquanto vêm proliferar as formas de apropriação privada do que é público, e que deveria servir à promoção da justiça social. A igualdade de oportunidades deveria deixar de habitar a mera formalidade dos textos legais e a esfera das boas intenções políticas. E passar a residir no âmago das políticas públicas, financiada particularmente pelos tributos indiretos, pagos por todos, inclusive pelos miseráveis.

Cenas como aquela produzem um efeito humanizador, desde que tida como anormal, a fim de lutarmos por sua erradicação. Que tal começar pela sensibilização moral contida no poema, O bicho, do pernambucano Manuel Bandeira? "Vi ontem um bicho/ Na imundície do pátio/ Catando comida entre os detritos./ Quando achava alguma coisa,/ Não examinava nem cheirava:/ Engolia com voracidade./ O bicho não era um cão,/ Não era um gato,/ Não era um rato./ O bicho, meu Deus, era um homem."

Artigo de Valdeblan Siqueira, publicado no Jornal do Comércio 

» Valdeblan Siqueira é auditor fiscal de tributos da Secretaria da Fazenda de Pernambuco e professor de ética profissional da Faculdade de Direito dos Guararapes

Data de inclusão: 18/07/2008

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